sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Nelson

Início de crônica publicada em "O Globo" de 01 de julho de 1968.

1. Ontem, em plexo expediente, comecei a sentir uma misteriosa angústia. Quero que me entendam. Disse "angústia", mas explico - era um sofrimento menor e indefinível. Paro de bater à máquina e puxo um cigarro. Sofria sem nenhum motivo preciso, concreto. Fui ao boteco da esquina tomar um cafezinho. A angústia continuava lá. Mexendo o cafezinho, descobri subitamente tudo. Eu me afligia porque estava sentindo falta de uma coisa e não sabia o quê. Voltei para a redação e aquilo não me saía da cabeça. "Falta alguma coisa", repetia para mim mesmo.

2. Mas não sabia o que era. Paciência. Quero trabalhar e não posso. De repente, há um clarão interior: - as polainas! Eu sentia, exatamente, a falta das polainas. Não em mim, que nunca as usei, mas nos outros. Olhem em torno, baixem a vista. As polainas desapareceram da cidade, do País. São antigas, espectrais, como o guarda-chuva de Paulo de Frontim. Será que alguém as usa? Esqueço o trabalho e me concentro. Eis a pergunta que me faço: - "Qual foi o último sujeito que eu vi de polainas?"


Obs - colocamos esta foto e perguntamos sobre Nelson Rodrigues lá na nossa página no face. A linda Paraísos de Papel.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Carta de Caio para Cida Moreira

Trecho de carta escrita em 18 de novembro de 1994.

"Criança, descobri, é mais curativo que AZT. Então estou assim, muy tia, e daquelas tias solteironas carentes exploradas pelos sobrinhos, a quem cobre de presentes e estraga completamente a educação dos pais. Daquelas tias que ficam na memória, tipo a Clotilde de Éramos Seis (que bela atriz a Jussara Freire, hein?). Mas como eu ia dizendo, agora que a saia-justa-de-couro-cru-sem-fenda-em-nesga pintou, é hora de fazer tudo que sempre quis. E é maravilhoso ver Tudo Que Sempre Quis é simples, belo acessível, fácil, do bem. E precioso, exatamente porque pode ser fugaz. Comecei a aprender isso no hospital, continuo aprendendo."


sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

No teu deserto



Muitas vezes me tenho lembrado da Cláudia. Talvez menos do que seria normal, certamente menos do que ela merece. Mas, quando me lembro, vem-me a imagem desse riso ou da fugaz tristeza que às vezes lhe corria nos olhos e em que só estando atento se reparava. Muitas vezes me lembro dos nosso diálogos, durante as longas horas daqueles sofridos e gloriosos dias, interminavelmente aos saltos e solavancos dentro do jipe, navegando no vazio, num horizonte despido de qualquer vaidade e presunção. Dias de inocência, de iniciação, de descoberta, pelo Sahara adentro, pelas nossas almas adentro. Ou então lembro-me dos nossos diálogos ou gestos ao fim do dia, quando finalmente parávamos para acampar junto às dunas e não havia tempo a perder para montar a tenda e tirar as coisas necessárias para o jantar e para a noite enquanto havia luz. E então Cláudia desaparecia invariavelmente, para andar de mota ou conversar com os amigos, deixando-me a rogar pragas, na ingrata tarefa de esperar as espias da tenda no chão, para o que me faltava todo o jeito e vontade. Tínhamos combinado que ela se encarregaria da despensa e eu da cozinha, ela do acampamento e eu da condução. Tínhamos combinado tantas coisas! Só quando o deserto ficou para trás e Espanha apareceu à vista, quando navegávamos de volta para casa, atravessando o Estreito num barco que rasgava a escuridão líquida da noite e com o jipe destroçado arrumado no porão do navio, é que percebemos que todas as promessas estavam a chegar ao fim. O que nos trouxera até ali, entre amuos e tempestades de areia, entre riso e a alegria, fora a necessidade de um mínimo de ordem e disciplina: era preciso chegar lá e voltar. Mesmo a desordem necessita de uma ordem que lhe dê um sentido para que não seja apenas leviandade.


terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Como curar um fanático

Trecho final de uma palestra  proferida em novembro de 2015:

No livro que escrevemos juntos, Os judeus e as palavras, minha filha, professora Fania Oz-Salzberger, e eu afirmamos:


     Existe uma teologia judaica da chutzpá. Ela reside na sutil junção da fé, tendência a discutir e fazer humor de si mesmo. E redunda numa reverência especialmente irreverente. Nada é tão sagrado que não mereça uma zombaria ocasional. Você pode rir do rabino, de Moisés, dos anjos e até mesmo do Todo-Poderoso.
      Os judeus têm um longo legado de riso, às vezes adjacente ao nosso longo legado de lágrimas. Há uma sólida tradição de autocrítica agridoce, muitas vezes ao ponto da autodepreciação, que se mostrou um instrumento confiável de sobrevivência num mundo hostil. E uma vez que riso, lágrimas e autocrítica são quase sempre verbais, todos eles fluem tranquilamente no hábito hebraico e judaico de discutir por tudo e debater com todo mundo: consigo mesmo, com os amigos, com os inimigos, e às vezes com Deus.


Esses traços judaicos de rir e de discutir são ao mesmo tempo muito sociais e profundamente individuais. Vou terminar com uma reflexão sobre este verso sublime do poeta inglês John Donne: "Nenhum homem é uma ilha". A isso, ouso acrescentar: nenhum homem é uma ilha, mas cada um de nós é uma península: em parte conectado com a terra firme da família, da sociedade, da tradição, da ideologia, etc. - e em parte voltado para os elementos, sozinho e em silêncio profundo.

Penínsulas é o que somos - e nos deve sempre ser permitido continuarmos a sermos penínsulas. Eu me ressinto daqueles que ficam pressionando cada um de nós a sermos mais do que uma molécula sem rosto de alguma terra firme, alguma terra prometida, algum reality show, algum paraíso de extremistas - tanto quanto me ressinto dos que estão tentando nos tornar um arquipélago de ilhas isoladas, cada uma mergulhada numa solidão eterna e numa perpétua luta darwinista com todos os outros.

Nós, humanos, pertencemos uns aos outros, mas não da maneira dos fanáticos, e não da maneira comercialmente infantil. Pertencemos uns aos outros no sentido às vezes atingido na boa literatura: no dom da curiosidade, na aptidão para imaginar a vida na pele de cada um dos outros. E depois o momento de graça, o momento metaforicamente judaico no qual traduzimos nossas profundas diferenças individuais no milagre das pontes construídas por palavras.


domingo, 17 de janeiro de 2016

Veríssimo



Trinta anos

Encontraram-se, trinta anos depois, numa festa. Ela sorriu e disse: "Como vai?"
- Vocês já se conhecem? - perguntou a dona da casa.
Ele não disse: "Nos conhecemos. No sentido bíblico, inclusive. Foi o amor da minha vida. Quase me matei por ela. Sou capaz de morrer agora. Ah, vida, vida".
Disse:
- Já.
- Faz horas, né? - disse ela.
Sentou-se ao lado dela. Estava emocionado. Mal conseguia dizer:
- Trinta anos...
- Xiii! Nem fala! Estou me sentindo uma velha.
E acrescentou:
- Caquética.
Curioso. Ela engordara, claro. Tinha rugas. Mas o que realmente mudara fora a voz. Ou será que ela sempre tivera aquela voz estridente? Impossível. Ele se lembrava de tudo dela. Tudo. O amor da sua vida. Ela agora lhe cutucara o braço.
- Tu tá um broto, hein?
- Que fim você levou? Quer dizer...
- Nem me fala, meu filho. Sabe que eu já sou avó?
- Não!
Ele não conseguira esconder o horror na sua voz. Mas ela tomou como um elogio. Gritou "Haroldo!", chamando o marido, que veio sorrindo. Ela apresentou: "este aqui é um velho amigo..."
Mas não disse o nome. Meu Deus, ela esqueceu o meu nome! Ela instruiu o marido:
- Mostra o retrato do Gustavinho.
E para ele:
- Tu vai ver que mimo de neto.
O Haroldo pegou a carteiras. Ela esqueceu o meu nome. E eu me lembro de tudo! A cicatriz do apêndice. O apartamento na André da Rocha. "Vou te amar sempre, sempre"! Tudo!
O Haroldo tirou o retrato da carteira. Ele pegou o retrato. O Gustavinho olhava assustado para a câmara.
- Não é um amor? - perguntou ela.
Ele devolveu o retrato para o Haroldo. Disse:
- Não.
- Como, "não"?
- Não achei, pronto.
E saiu atrás de um uísque.






quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Nada a temer

Julian Barnes, um puta escritor.



Talvez eu devesse avisá-lo (especialmente se você for filósofo, teólogo ou biólogo) que muito do que há neste livro irá parecer-lhe coisa de amador. Mas somos todos amadores no que se refere às nossas próprias vidas. ...Também quero avisá-lo de que haverá um bocado de escritores neste livro. Quase todos eles mortos, e uma boa quantidade de franceses. Um deles é Jules Renard, que disse: "É quando nos deparamos com a morte que nos tornamos mais afeitos aos livros." Também haverá compositores. Um deles é Stravinsky, que disse: "A música é a melhor maneira que temos de compreender o tempo." Estes artistas - estes artistas mortos - são meus companheiros de todo dia, mas também são meus antepassados. Eles são minha verdadeira linhagem (espero que meu irmão sinta o mesmo sobre Platão e Aristóteles). A descendência pode não ser direta, nem possível de provar - filho bastardo, essas coisas - mas eu a declaro assim mesmo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Mais - Ainda estou aqui



Scott Fitzgerald dizia que não há segundo ato na vida dos americanos. Então começou o quarto ato da vida da minha mãe. O mais injusto, o mais cruel, definitivo, que deu densidade à sua tragédia.

Até então, acreditava-se que a memória era compartimentalizada num reservatório, numa parte do cérebro, que os pensamentos a elaboravam, a interpretavam e a engavetavam por lá. Sabemos agora que não. Ela não fica armazenada em uma seção exclusiva, mas espalhada pelo cérebro todo, vive em sinais e impulsos eletromagnéticos. As lembranças se movem pelo cérebro. Não à deriva, pois a qualquer momento neurônios constroem milhões de novas conexões e as resgatam. O circuito neurológico se modifica a cada segundo. Somos diferentes em cada instante que vivemos. Temos um cérebro diferente a cada segundo. E quando lembramos algo, as conexões mudam fisicamente a memória do lugar. 


segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Como curar um fanático

Texto originalmente apresentado (como discurso) na Alemanha em 2002, editado para a publicação do livro neste ano.



Se eu apenas pudesse comprimir um senso de humor em cápsulas e persuadir populações inteiras a engolir minhas pílulas de humor, assim imunizando todo mundo contra o fanatismo, eu poderia me candidatar um dia ao prêmio Nobel de medicina, não de literatura. Mas prestem atenção! A ideia de comprimir senso de humor em cápsulas e a noção de fazer outras pessoas engolirem minhas pílulas de humor para seu próprio bem, com isso curando-as de seu problema, já está ligeiramente contaminada pelo fanatismo. Sejam muito cuidadosos, fanatismo é fácil de pegar, é mais contagioso que qualquer vírus. Pode-se facilmente contrair fanatismo quando se está tentando vencê-lo ou combatê-lo. Basta ler um jornal ou assistir ao noticiário na televisão para ver quão facilmente as pessoas pode se tornar fanáticas antifanáticas, zelotes antifundamentalistas, cruzadas do antijihadismo. Por fim, se não conseguirmos vencer o fanatismo, talvez possamos ao menos contê-lo um pouco. Como eu disse, a capacidade de rir de nós mesmos é uma cura parcial, a capacidade de nos vermos como os outros nos veem é outro remédio. A capacidade de existir em situações em aberto, aprender a desfrutar da diversidade, também pode ajudar. Não estou pregando um relativismo moral total, certamente não. Estou tentando desenvolver a necessidade de cada um imaginar o outro. Divagar em relação ao outro quando brigamos, fantasiar sobre o outro quando reclamamos, imaginar o outro exatamente no momento em que achamos que estamos 100% certos. Mesmo quando se está 100% certo e o outro 100% errado, ainda é proveitoso pensar sobre o assunto.


sábado, 9 de janeiro de 2016

Bibliotecas

Eu geralmente não posto contos inteiros. Pego os trechos que mais gosto, que me dizem mais, e coloco. Mas quando um autor escreve assim e sobre o assunto que mais gostamos, fica difícil escolher. Vejam só.



As bibliotecas deviam ser declaradas da família dos aeroportos, porque são lugares de partir e de chegar.
Os livros são parentes directos dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se entrassem dentro do próprio ar, a ver o que existe para depois do que não se vê.
O leitor entra com o livro para o depois do que não se vê. O leitor muda para o outro lado do mundo ou para outro mundo, do avesso da realidade até ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se importam que os leitores se sintam fora das bibliotecas.
Os livros são também toupeiras ou minhocas, troncos caídos, maduros de uma longevidade inteira, os livros escutam e falam ininterruptamente. São estações do ano, dos anos todos, desde o princípio do mundo e já do fim do mundo. Os livros esticam e tampam furos na cabeça. Eles sabem chover e fazer escuro, casam filhos e coram, choram, imaginam que mais tarde voltam ao início, a serem como crianças. Os livros têm crianças ao dependuro e giram como carrosséis para as ouvir rir e para as fazer brincar.
Os livros têm olhos para todos os lados e bisbilhotam o cima e o baixo, a esquerda e a direita de cada coisa ou coisa nenhuma. Nem pestanejam de tanta curiosidade. Podemos pensar que abrir e fechar um livro é obrigá-lo a pestanejar, mas dentro de um livro nunca se faz escuro. Os livros querem sempre ver e estão sempre a contar.
As bibliotecas só aparentemente são casas sossegadas. O sossego das bibliotecas é a ingenuidade dos ignorantes e dos incauto. Porque elas são como festas ou batalhas contínuas e soam canções ou trombetas a cada instante. E há invariavelmente quem discuta com fervor o futuro, quem exija o futuro e seja destemido, merecedor da nossa confiança e da nossa fé.
Adianta pouco manter os livros de capas fechadas. Eles têm memória absoluta. Vão saber esperar até que alguém os abra. Até que alguém se encoraje, esfaime, amadureça, reclame o direito de seguir maior viagem. E vão oferecer tudo, uma e outra vez, generosos e abundantes. Os livros oferecem o que são, o que sabem, uma e outra vez, sem se esgotarem, sem se aborrecerem de encontrar infinitamente pessoas novas. Os livros gostam de pessoas que nunca pegaram neles, porque têm surpresas para elas e divertem-se com isso. Os livros divertem-se muito.
As pessoas que se tornam leitoras ficam logo mais espertas, até andam três centímetros mais altas, que é efeito de um orgulho saudável de estarem a fazer a coisa certa. Ler livros é uma coisa muito certa. As pessoas percebem isso imediatamente. E os livros têm vertigens. Eles gostam de pessoas baixas e gostam de pessoas que ficam mais altas.
Depois da leitura de muitos livros pode ficar-se com uma inteligência admirável e a cabeça acende como se tivesse uma lâmpada dentro. É muito engraçado. Às vezes, os leitores são tão obstinados com a leitura que nem se lembram de usar candeeiros de verdade. Tentam ler só com a luz própria dos olhos, colocam o livro perto do nariz como se o estivessem a cheirar. Os leitores mesmo inteligentes aprendem a ler tudo, até aquilo que não é um livro. Leem claramente o humor dos outros, a ansiedade, conseguem ler as tempestades e o silêncio, mesmo que seja um silêncio muito baixinho. Alguns leitores, um dia, podem aprender a escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por fruto, como as árvores que dão maçãs ou laranjas. Pessoas que dão palavras.
Já vi gente a sair de dentro dos livros. Gente atarefada até com mudar o mundo. Saem das histórias e vestem-se à pressa com roupas diversas e vão porta fora a explicar descobertas importantes. Muita gente que vive dentro dos livros tem assuntos importantes para tratar. Precisamos de estar sempre atentos. Às vezes, compete-nos dar apoio. Alguns livros obrigam-nos a pôr mãos no trabalho. Mas sem medo. O trabalho que temos pela escola dos livros é normalmente um modo de ficarmos felizes.
Todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pela imaginação. Por isso é que os textos são mais do que gigantescos, são absurdos de um tamanho que nem dá para calcular. Mesmo os contos, de pequenos não têm nada. Se os soubermos entender, crescemos também, até nos tornarmos monumentais pessoas. Edifícios humanos de profundo esplendor.
Devemos sempre lembrar que ler é esperar por melhor.




quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Livro do desassossego

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atento a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lho de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever ,em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados. 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Contos de cães e maus lobos



Novo livro de contos. Desnecessário falar sobre a beleza da escrita. E tem um dos prefácios mais lindos que eu já li, do Mia Couto, que fala: "A escrita de Valter sugere, a todo o momento, que os outros somos nós mesmos" dentre outras coisas.

E no conto: "A menina que carregava bocadinhos":

"Lentamente, aprendeu a esquecer-se da sua própria família, para não lhe sentir a falta, para não carregar incompletudes. Queria estar inteira, como quem resolve passados e abraça o presente sem hesitações. Era para não guardar medos, não alimentar medos. Construía esquecimentos, pensava ela. Gostava de construir esquecimentos. Tinha uma urgência enorme em dedicar-se às tarefas sem esperar nada."

domingo, 3 de janeiro de 2016

Natalia Ginzburg

Trecho do conto "Silêncio":

Do sentimento de culpa, do sentimento de pânico, do silêncio, cada um tenta se curar a seu modo. Alguns se lançam em viagens. Na ânsia de conhecer países novos e gente diversa há a esperança de deixar para trás os próprios fantasmas turvos; há a secreta esperança de descobrir em algum ponto da Terra a pessoa que poderá falar conosco. Alguns se embebedam para esquecer os próprios fantasmas turvos e para poder falar. E depois há todas as coisas feitas só para não ter de falar: uns passam as noites dormindo numa sala de projeção, com a mulher ao lado, e assim não precisam conversar; uns aprendem a jogar bridge; uns fazem amor, o que também pode ser feito sem que se diga uma palavra. Frequentemente se diz que essas coisas se fazem para passar o tempo: na verdade, as fazemos para enganar o silêncio.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Poesia Reunida

Corridinho

O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.