segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Voltando com Oliver Sacks

Trecho de Mercúrio (do livro: Gratidão).

W. H. Auden vivia me dizendo que achava que iria viver até os oitenta e então "se mandar" (viveu só até os 67). Lá se vão quarenta anos desde que ele morreu, mas ainda sonho com ele, com meus pais e com ex-pacientes. Todos se foram há muito tempo, mas são amados e importantes na minha vida.

Aos oitenta paira o espectro da demência ou do derrame. Um terço dos meus contemporâneos está morto, e vários outros, com graves problemas mentais ou físicos, vivem presos numa existência trágica e mínima. Aos oitenta as marcas da decadência são demasiado visíveis. Nossas reações são um tanto mais lentas, os nomes nos fogem mais amiúde, e cumpre administrar melhor as energias, mas ainda assim é possível nos sentirmos muitas vezes cheios de vigor e nem um pouco "velhos". Quem sabe, com sorte, eu consiga seguir, mais ou menos intacto, por mais alguns anos e me seja concedida a liberdade para continuar a amar e trabalhar, as duas coisas mais importantes na vida, como garantiu Freud.

Quando chegar a minha hora, espero que eu possa morrer na ativa, como Francis Crick. Quando lhe informaram que seu câncer de cólon tinha voltado, de início ele não disse nada, simplesmente olhou ao longe por um minuto, depois retomou o que vinha pensando. Ao lhe perguntarem sobre seu diagnóstico algumas semanas depois, ele respondeu: "Tudo o que tem um começo deve ter um fim". Morreu aos 88 anos, ainda totalmente comprometido com seu trabalho mais criativo.

Meu pai, que viveu até os 94 anos, costumava dizer que seus oitenta anos tinham sido uma das décadas mais agradáveis de sua vida. Ele sentiu, como começo a sentir, não um encolhimento, e sim uma expansão da vida mental e da perspectiva. Nesta altura já tivemos uma longa experiência de vida, não só da nossa, mas também da de outros. Já vimos triunfos e tragédias, altos e baixos, revoluções e guerras, grandes realizações e profundas ambiguidades também. Já assistimos notáveis teorias ascenderem e acabarem derrubadas por fatos teimosos. Somos mais conscientes da transitoriedade e, talvez, da beleza. Aos oitenta podemos relembrar um vasto panorama e ter um senso claro de história vivida impossível aos mais novos. Posso imaginar, sentir nos ossos, o que é um século, coisa que não podia fazer aos quarenta ou sessenta. Não penso na velhice como uma fase cada vez mais penosa que é preciso suportar e levar o melhor possível, mas como um período de liberdade e tempo descomprometido, sem as infundadas urgências de outrora, livre para explorar o que eu quiser e para amarrar os pensamentos e sentimentos de toda uma vida.

Não vejo a hora de fazer oitenta anos.





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